Quando o Lean não é Lean

Quando o lean nao e lean
             Inconsistências internas podem implodir as iniciativas lean?

Fica para outro momento a discussão sobre a construção de um sistema lean sustentável, que se mantenha funcional no longo prazo. Exploram-se aqui algumas incoerências que podem, já de saída, travar as iniciativas lean na organização.

Assumamos que estamos diante de um sistema lean, onde se pratica o objetivo de “agregar valor e reduzir as perdas continuamente”. Eliminar o que é desnecessário. Em tal sistema, os problemas da organização estão sendo resolvidos em todas as áreas, utilizando-se um método científico que elimina as causas e a recorrência desses problemas. Algo muito diferente do contínuo reaparecimento dos mesmos problemas e da interminável aplicação de soluções paliativas. Muito diferente, também, da empresa em que o “chefe” é quem dispara a solução dos problemas, porque no sistema lean cada pessoa é responsável pelos resultados de seus processos. As iniciativas de melhoria, disparadas por muitas pessoas, são em muito maior número e mais eficazes do que na empresa fortemente hierarquizada. O desempenho em termos operacionais e financeiros é crescente e robusto.

Para alcançar tal maestria, é preciso estar aplicando o lean na empresa real, onde eventualmente não se verificam algumas características importantes.

            Dê-me uma alavanca e levantarei o mundo. A alavanca é uma das ferramentas mais simples e fantásticas que existe. Ferramentas gerenciais do lean, nem tão simples assim, são igualmente fantásticas: VSM, Kanban, TPM, TRF, Yamazumi, Kaikaku, Hoshin, Kaizen, Hansei,  Milk Run, OEE, 5S, Heijunka, Jishuken, Jidoka, 3P e A3. Ficamos ansiosos para entender o que significa cada uma? Calma, tenhamos paciência, antes que nervosamente comecemos a pesquisar ferramentas. Ferramentas existem para consertar problemas. As questões cruciais são: qual o problema importante que precisa ser resolvido? O problema é conhecido em profundidade? Que recursos há para resolvê-lo? Agora, sim, pode-se falar em ferramentas. Um cuidado, antes: para quem só conhece martelo, todos os problemas se parecem com pregos. A abordagem que parte da solução para o problema é uma abordagem distorcida, porque não toma o problema como ponto de partida. Mais um cuidado: aprender o uso de muitas ferramentas pode ser um desperdício em si, quando caracteriza outra distorção:  ferramentas à procura de um problema. Há o relato de um caso de uma montadora brasileira de automóveis, que começou muito bem sua caminhada lean, mas empacou, quando o sistema lean passou a ser sinônimo das ferramentas que utilizava: um conjunto de 69 ferramentas! Como é possível que as pessoas compreendam e utilizem com eficácia tantas ferramentas? Efetivamente, fazer isso não é SIMPLES.

     Um diamante é um pedaço de carvão que se saiu bem sob pressão. Nas empresas competitivas é comum ouvir que “temos que produzir resultados”. A pressão para obter desempenhos melhores é muito comum nessas empresas. A forma como é feita varia muito conforme o foco: no poder, no curto prazo, em resultados, para achar o responsável pelo erro. Ou, com foco na melhoria dos processos mirando o longo prazo. O ambiente pode ser desanimador, onde a frustração e as cobranças pessoais aumentam a cada meta não atingida. A tensão emocional é alta. “Eu queria que fosse melhor”, “não dá”, “é impossível” e “eles têm melhores recursos do que nós” são expressões de quem baixou sua expectativa, ambição ou nível de exigência. Algumas pessoas e organizações conseguem manter a EXIGÊNCIA, a tensão criativa constante por padrões mais elevados. É disso que trata a Melhoria Contínua.

     A ação surge de uma disposição para assumir responsabilidades.  A organização se beneficia quando os donos do processo buscam soluções e comunicam os problemas, que de outro modo ficariam escondidos. Problemas intocados e oportunidades perdidas carregam um traço comum: não houve quem assumisse a RESPONSABILIDADE.. No lean, cada um responde pelo resultado dos seus processos e a autoridade por melhorar resultados é daquele diretamente envolvido com o processo. À medida que o sujeito assume o problema, procura entendê-lo e busca uma solução, sua autoridade aumenta na mesma medida. A menos que a gerência diga: “quem o autorizou a fazer isso?” ou “essa não é nossa prioridade no momento”. Há formas mais sutis de desencorajamento para tomar a iniciativa e assumir os riscos. As mais comuns são: “os problemas se originaram noutro lugar” e “esse problema não é meu”. Uma receita garantida de que os problemas cuja solução envolve vários departamentos continuarão ocorrendo. O efeito é o mesmo quando o departamento de melhoria contínua puxa para si a responsabilidade, sem notar que está tirando a responsabilidade – que é de todos – pelas iniciativas de melhoria.

     Uma alma sem respeito é uma morada em ruínas. A dignidade do ser humano está, em grande medida, ligada ao trabalho. Por isso, manter o emprego é uma forma de respeito. Contudo, a prática do RESPEITO no lean vai além da consideração pelas pessoas. Vejamos: elogiar um trabalho mal feito é demonstração de respeito?  Não!

Por outro lado, se um grupo ou indivíduo faz um trabalho, em que se empenhou, e é desautorizado, isso constitui uma forma de desrespeito. Punir o mau resultado, negligenciando o esforço, também. O discurso de que “as pessoas são nosso maior ativo” não configura respeito se o trabalho é inseguro, sem conteúdo e desmotivante.

Curiosamente, no lean, RESPEITO tem uma interpretação controversa e pouco compreendida: a valorização da pessoa por instigá-la ao aprendizado e ao crescimento; a não-aceitação de um desempenho que pode ser melhorado. A orientação do tutor exigente que diz “refaça, você pode fazer melhor” é uma história bem conhecida no lean:  Taiichi Ohno, ou outro mentor, orientando o pupilo a aperfeiçoar um plano de melhoria, mandando-o fazer e refazer até que fique bom. Essa orientação pode ser entendida positivamente (“eu posso fazer melhor”), mas é mais provável que seja encarada negativamente (“ele está desvalorizando meu trabalho”). É mais provável que o pupilo se sinta desrespeitado. Entretanto – e esta é uma análise totalmente pessoal – a intenção é justamente o contrário: valorizar o crescimento das pessoas. É sinal de consideração ver um trabalho ruim do seu pupilo e deixar passar? Seguramente, não!

Alertar sobre o erro – e exigir o melhor – demonstra consideração pelo outro. Mas é um tipo de consideração diferente, alinhada à verdade, mas muito próxima ao constrangimento. Os líderes podem pensar que exigência e bom relacionamento são excludentes e optar por um dos dois. Mais produtivo, porém mais difícil, é ser exigente e respeitoso ao mesmo tempo.

     Ninguém quer seguir alguém que não sabe onde está indo. Há um consenso sobre a importância da liderança no sucesso do lean. Se os líderes desconhecem a natureza do lean, não se pode esperar mais do que algumas iniciativas isoladas e passageiras.

     Termos consciência de sermos ignorantes é um grande passo para o conhecimento. Vamos conversar sobre problemas? Claro: “não dá para entender por que fulano ainda não tomou uma atitude. É tão simples de resolver”. Agora, vamos falar sobre um problema sobre o qual você tem responsabilidade? “Veja bem, se eu tivesse mais recursos a minha disposição isso já estaria resolvido”. Ei amigo, vamos colocar os seus problemas à vista?

Não é tão fácil assim. Veja o caso do operador que foi convidado a fazer uma pilha de desperdícios de seu processo, descartando-a semanalmente, como forma de medir o tamanho do problema. Um tempo depois o operador passou a descartar diariamente as peças refugadas porque “fica feio”. Morreu aí a ideia da gestão visual. “Colocar os problemas à vista”, “não ter problema já é um problema em si”, são fundamentos bem conhecidos dos praticantes lean, mas difíceis de serem postos em prática. Não é à toa que Sammy Obara e  Darril Wilburn propõem coragem, humildade e kaizen.

Perceberam? Tratar de problemas envolve um desejo escondido de desviar do problema, de evitá-lo. Um impulso para deixar o problema inconsciente: não seido problema e (intimamente) não quero saber. Sem ter CONSCIÊNCIA dos problemas, dos desperdícios, dos erros e das falhas não é possível fazer melhorias. Saber que não sabe é a primeira atitude em direção ao aprendizado.

     É o olho do dono que engorda o boi. O local onde o trabalho é feito traz a informação atual, completa e real. A forma mais rica de estudar um problema é a observação direta. Ir ao gemba, ver com os próprios olhos, colocar em prática. Ou, de outra forma, confiar somente em relatórios, reuniões e informações indiretas. Ou ainda, não colocar os treinamentos em PRÁTICA. Em que proporção os treinamentos lean são colocados em prática? 5%, 10%, 50% ou 100%?

O lean deixou de ser lean? Faltou SIMPLICIDADE. O nível de EXIGÊNCIA é baixo. Não se assumiu RESPONSABILIDADE pelos processos. Pecou-se pela falta de RESPEITO. A LIDERANÇA foi insuficiente. Não há CONSCIÊNCIA sobre os problemas. Faltou PRÁTICA. Nossa experiência confirma que esses fatores atrapalham as iniciativas lean?


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Ideias e experiências: Grupo Lean Brasil (https://www.linkedin.com/groups?home=&gid=1864336). Discussão Lean: por que parou? (https://www.linkedin.com/grp/post/1864336-5984299616961589248), 19/03/2015.
Referências:

BAÑOLAS, Rogério Garcia. Mudança: uma crônica sobre transformação e logística lean. Porto Alegre: Bookman, 2013.

OBARA, Samuel. WILBURN, Darril. Toyota by Toyota: reflections from the inside leaders on the techniques that revolutionized the industry. New York: CRC Press, 2012.

SENGE, Peter. A Quinta Disciplina: arte e prática da organização que aprende. São Paulo: Ed. Best Seller, 2004.

SHOOK, John. Managing to learn: using A3 management process to solve problens, gain agreement, mentor and lead.

TORRES, Alvair. WECHSLER, Ana.  FAVARO, Cleber. A Model of Organizational Trajectories to Innovation Management. Journal of Technology Management & Innovation. Chile: 2007, vol. 2, Ed.1.
Citações: Arquimedes, Mestre Arievlis, Dietrich Bonhoeffer, Código Samurai, Joe Namath, Benjamin Disraeli, anônimo.